Ele esperou acordado. Como se nada fosse ou bastasse naquele exato momento. Eu, sem explicações, parecia ter sido cortado ao meio, como uma folha de papel. A bagunça, as palavras de ordem, aquele caos todo em uma briga de urso. Eu contra a parede. Mas naquele dia, ele sabia que nada poderia mudar; o vaso em cima da mesa da sala como um enfeite cafona e barato com ar de decoração. Onde eu deitava, de costas, sempre olhando para o travesseiro listrado, pintado de cores velhas e frias. Ali mesmo, onde eu deitava e antes mesmo de acordar, já sentia subir, como uma serpente, pelas pernas, enroscando-me os braços, as pernas e todos os meus sentidos. Sentia, sentia subir pelo calor, centímetro por centrímetro. Duas semanas antes, a mãe havia pedido uma compra grande no mercado. Faltava o básico, dizia com aquele olhar materno-carente.
Deitado, como um pára-raios, toda aquela energia subia fervendo. Chegava-me nos lábios, trêmulos, quentes e vermelhos de gozo. Minhas mãos descendo, lentas e sorrateiras, tentando achar lugar dentro da chama. Mordi os lábios. Senti como se eu fosse afundar na cama, no meu suor, no meu desejo e na combustão ardente, fiz-me dentro de você. Fiz-me como presa de serpente num desespero quase louco, sem freio, cheio de vontades e imaginações férteis. Eu tentei correr, eu tentei escapar movendo os pés rapidamente enquanto que o seu cheiro fazia meu corpo parar, sangrar feito animal de ritual.
Ele deixou as compras na mesa da cozinha. O saco de arroz e feijão guardou no armário, dentro dos potes que a mãe, cuidadosamente, deixava na parte mais baixa do armário. Deixou um bilhete seco, porém carinhoso, próximo aos remédios para enxaqueca. Ajustou o vaso da mesa, pegou uma maça e foi para o trabalho sabendo que depois desse dia, jamais veria a mãe trançando colares e fazendo ornamentos de tule para o bebedouro.
Eu sentei na minha mão. A água escorrendo meio quente. Meu corpo se abriu. Talvez ele sinto só isso. Ele só sabe sentir isso. Vozes em francês escolar, eventos mal administrados e aquele trabalho sem volta. Eu só sei sentir isso. As cores do pescoço, a fome e a fúria que aos poucos me corroem, rasgando-me como se eu fosse feito de algodão colorido. Fio a fio. Eu me empresto em aventuras irreais. Me empresto na água morna, e mesmo sabendo ser parte do meu corpo, imagino ser do dele, em mim, em mim no fundo, por dentro me deixando alagado de prazer, por dentro e fora, nas orelhas quentes e na pupila dilatada. Eu deitado, naquele manhã fria, minhas mãos trabalhando para ter ele dentro de mim, como um fogo, como um pedaço. Eu deixei, por fim, que a minha cama fosse apenas uma chama; deixei que ela entrasse em mim, como ele, o prazer mais delicioso da fantasia, o corpo másculo de ombros curtos numa estatura perfeita de tamanho, forma e cheiro. Enfim, tornei-me a chama vangloriada. A chama do gozo com ele dentro de mim a fincar desejos.
Anos se passaram. Ainda comprava arroz e feijão para mãe desaparecida. Procurava na cozinha, nos armários. Ele pensava que talvez fosse melhor encerrar as buscas, ler um livro e tentar levezas. Contava com ares de saber para quem quisesse ouvir. Da solidão, sabia mais que todos. Do amor, desconhecia cartilhas e formas abstratas. E nem podia dizer que ser professor era lá grandes coisas. Mas conhecia Aristóteles. Sabia Kant e um pouco de Descartes. Deitava sempre com o mesmo pijama. A mãe, desaparecida, sempre vinha, todas as noites com beijos molhados. Anos se passaram. o bilhete ficou ali na mesa. Os remédios, as roupas, tudo no mesmo lugar. Eu amanheci descoberto, com os lábios mordidos de amor. Escrevi um poema e coloquei fogo. Ele voou como pássaro fênix. Eu sabia que ainda tinha alguns minutos até tudo fazer efeito. Deitei-me novamente e senti ele pesado, com o olhar fixo na minha encenação quase pornográfica. Virava a cabeça e ele com as mãos delicadas de homem, voltava-a no lugar junto aos seus olhos. Dizia, sem pudores, para morder o dedo, lamber os lábios e sentir o gosto. Eu obedecia. Eu obedecia meu corpo dentro dele. Quente, uma única forma de viver. Ali dentro. Dentro de tudo. Do mundo, do fogo, eu como se fosse uma chama gritando.
1 comment:
num sei vc, mas me da um vazio depois!
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