Em 1656, Diego Velásquez espantou seus admiradores ao apresentar La Família de Felipe IV. O espanto não decorreu somente da iluminação característica ou da introdução de um auto-retrato e sua técnica de quadro dentro do quadro. Havia ali, dentro de toda a perspectiva algo "estranho". Sim, ali mesmo, dentro das belezas iluminadas de um gênio havia um sopra quase irreconhecível: um anão. Em meio as belezas da realiza, o disforme ser aparecia, olhando para o espectador quase como se quisesse se apresentar. Isso, em 1656. Aquele anão, assustador, atravessou os séculos de quadro em quadro, se movimentou pela música e por todas as esferas da chamada arte. Ele tornou-se o espelho. A antítese e o igual. Dele, saímos todos. O horror pelo disforme. Esse mesmo personagem pitoresco, viveu entre nós, se instaurou nas classes dominantes e transformou a cultura do homem contemporâneo. Foi com ele, um simples anão, que aprendemos que o feio pode estar no bonito, mas mascarado, iluminado, quadro a quadro.
Alguns muitos anos depois, ainda nos espantamos com o tal anão. É ele, os travestis, as drag queen, clubers, góticos, emos, roqueiros, metaleiros, afro-descendentes, orientais e, claro, os transexuais. Hoje, esse ano ganhou nome nas manchetes. Ele se chama Thomas Beatie, uma mulher norte-americana que decidiu engravidar depois de uma mudança visual de sexo. Thomas, deu à luz a seu primeiro filho recentemente. Americanos, raivosos, protestaram. Outros elogiaram a atitude e outros resolveram não se pronunciar. Um verdadeiro circo. Um quadro de Velásquez. Mesmo o anão estando na sala a nos fitar, fingimos que ele não está lá. Ora, se permitimos a cirurgia plástica, aos tratamentos pesados contra o envelhecimento, a redução de estômago, por que não aceitar Thomas como uma família? Sim, os desajustes parecem ter crescido desde 1656. As formas contundentes da moral enraizadas na cultura do ocidente. Podemos alterar o nosso nariz, afiná-lo, remover a gordura e tirar linhas de envelhecimento, mas nunca, nunca, podemos assumir o tal anão que existe dentro de nós. Tirá-lo do quadro é uma infamia. Talvez um crime em alguns países. Essa força controladora que nunca nos deixára aceitar o Samson de Kafka ou mesmo o Thomas norte-americano. Sim, Nietszche foi um visionário e Foucault o pai do pensamento moderno. Somos previsíveis. Tirar o nariz sim, homem com barba dar à luz, JAMAIS!
De 1656 à 2008 algo deveria ter mudado. A perspectiva de uma possível quebra da moral religiosa, ou até mesmo esse anão que nos ultrapassa nas salas cirurgicas. Algo deveria ter mudado. Não somente aos norte-americanos, mas ao pensamento e, por que não, ao espírito humano. Uma linda criança, sortuda talvez de ter uma família com os anões que um dia serão o ponto de fuga de um quadro. Pensam: o que será dessa criança? Não podemos prever, mas podemos afirmar que seu mundo será desenhado fora do quadro, como se o seu mundo pudesse enfim, ser o começo de algo.
Uma família.
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