É tudo uma questão de castigo. Em casa, na rua ou em qualquer outro lugar. Vigiar e punir. É tudo uma questão de entender e estender o poder. Esse mesmo poder que agora se instituiu a todos e para todos. Nessa hierarquia mal construída, todos temos micro-poderes. Vigiar e ter a sensação de que se pode, mesmo que pouco. Denunciar, delatar, servir ao modelo maior da moral. E a boca, aposto, saliva naqueles que se dizem sargentos da sociedade. E voltamos à nossa querida infância onde a malcriação era severamente punida. Mas ai, vêm os guardiões da moral dizer que é uma questão de saúde pública. É, a saúde pública em um país, seja da ordem que for, da classe que for é, de fato, uma preocupação social. Especialmente aqui em que as regiões carentes se encontram em estado de plena miséria, é de fato questão de saúde pública proibir o fumo em locais fechados. É tudo uma questão de castigo. Se ninguém quis parar de fumar - o pai avisou - a solução foi proibir. Não tenho como me sentir mais criança. Como aquela criança sentada na porta da casa, com a mãe na cozinha fervendo a água para misturar à farinha e fazer o que eles entendem por comida. E claro, essa água era para durar a semana inteira, mas a fome falou mais alto. É uma questão de saúde pública que não temos memória política.
É tudo uma questão de castigo. Outro dia, li no jornal o presidente pouco se lixando para o que está acontecendo em seu governo. Virei a página e veio outra notícia falando sobre um casal de homens que foram espancados na porta de casa. No outro caderno, saltou-me aos olhos a notícia de que a bancada do PMDB tentará arquivar hoje os sete processos que restam contra Sarney no conselho. No mesmo caderno, um depoimento chocante a respeito das novas descobertas do colesterol. E a carta de uma mãe enviada à colunista especialista em comportamento e sexo, dizendo que manteve relações sexuais com o filho e que agora estava grávida. É, e aqui perto do trabalho uma manifestação a favor do fretado e professores da rede estadual reinvidicando por melhores condições depois que o colega foi morto dentro da sala de aula.
É, realmente, é uma questão de saúde pública. A idealização da classe média, por fim, chegou ao seu ápice. Vamos proibir o fumo em qualquer situação. Os direitos iguais castrados. Sinto que sofri um estupro mental. Lotes para se fumar fora. Lotes de 6 a 5 pessoas fumando na rua, vigiados pelo segurança carrancudo. Se pago imposto, se contribuo como qualquer um, pouco importa. A bola da vez é a classe média. A ascensão do novo burguês, que agora está protegido de nós, os fumantes insensatos e assassinos. A classe média está a salvo. Sentados à mesa do restaurante, a família ri e brinda feliz - com fumaça de cigarro à parte, por favor. O falso moralista ergue sua bandeira e finca o estatuto dos bons costumes. Nova lei, nova regra. As placas insinuando a punição. Lá mesmo, bem longe disso tudo, está a depravação da miséria. Mortos de fome, desmatamento e políticas ainda do engenho. Quem liga? Hoje vindo para o trabalho, um funcionário da CET, parado na avenida Santo Amaro, tapava o rosto depois de ser bombardeado pela fuligem dos carros. É uma questão de saúde pública. Avante moralistas. Brindemos à queda da democracia. A enfermidade que se enraizou dentro de todos nós. Agora, já acumulo a falta de direitos. Não tenho mais o direito de fumar, nem em áreas reservadas, e não tenho o direito de unir-me legalmente a pessoas que eu amo. É uma questão de saúde pública.
Não é mais uma questão política. Citar teóricos? Muito menos. Quando se dá, quando se transforma o poder e o distribui em pequenos pedaços, transformamos o Estado naquilo que ele mais quer: o poder absoluto, sobre tudo e sobre todos. E agora, além da grama do vizinho ser mais verde, teremos que aparar a nossa e a deles. Sim. E enquanto isso, todo mundo pro quarto de castigo.
E se eu te pegar fumando mais uma vez, eu denuncio você.