Saturday, May 30, 2009

Em todas as alucinações, em todos os sonhos de doçura e ira, algo me foi possuído. Os dentes afiados pedindo misericórdia para a besta que caminhava devagar, como uma serpente, rastejando pedaço por pedaço até formar um círculo de fogo. Ao meu lado, deitado calmamente esteve o demônio da eternidade. Enxergou-me diversões, espetáculos circenses, rasgando-me com suas garras enormes. Ao meio, fui partido, cindido como um animal sem fuga. Um belo jardim florido, caminhávamos nus pelos grandes campos coloridos. Essa era a minha existência. Eu estive lá no começo e no final. Alcançaram os malditos, a vulgaridade e meu espírito tornou-se a maldade encarnada. Os reflexos do espelho sumiram como se eu fosse agora um vulto daquilo que um dia pôde existir. Em todas as minhas alucinações, nesta tornei-me maléfico. Deitei na cama de espinhos, ardi no fogo brando dos céus e cuspi chamas de lúxuria pelo mundo onde passei. Destrui laços, raptei sonhos e espalhei a cobiça. Eu sou a besta. Eu fui o oceano e o espírito do amor. Um dia amei. Evoquei os deuses mortos.
Eu fui Medéia.
Assassinei meus filhos em nome do amor perdido.
Eu fui Cassandra e previ o ódio no mundo.
Eu sou édipo.
Quando anoitece, em meus círculos de fogo eu praguejo. Deito o corpo na lama e sonho pesadelos de eternidade. A felicidade que se foi. Eu me tornei a alucinação da mãe morta. Por onde passo, meu rastro cobre com um manto negro os passos alheios. Eu vejo o ódio e desperto o pior de tudo. Eu sou a besta rastejante, a cobra e o veneno maligno. Eu vi o demônio e para ele preparei o meu corpo. Eu fui esquecido.
Eu fui morto.
Eu me tornei o contrário, o avesso e a felicidade. Eu sou aquilo que sonhei.

Monday, May 18, 2009

Tim tim

Das relações pessoais, entendemos pouco. Um pouco de nada, um pouco daquilo que se foi e do que está por vir. Ainda, as lembranças do passado, pouco a pouco se costurando, fazendo uma pequena colcha colorida como arte do passado. Tudo tem um curso secreto, estranho e tortuoso. As vidas que se passam, vão longe pelo paraíso deserto das lembranças. Ibsen dizia que o homem mais forte é aquele que se mantém sozinho no mundo. Não há como negar tal força. Mas a solidão, tal como tantos outros buracos no caráter, também é a covardia. Covardia do cansaço. Uma certa preguiça moral em se relacionar com o mundo. A professora Sumiko, nas aulas de linguistica, todas as terças e quartas, explicou inúmeras vezes o quanto a linguagem depende do outro. Minha mentora, Rosana Paullilo, já falecida, ensinou-me que o mundo, o mundo como representação, é um espetáculo à dois. o eu que não existe sem o tu. Claro, Benveniste explicou-se melhor dizendo que só nos constituímos como sujeitos à medida em que o outro existe. Caímos na filosofia. Somente um tolo para acreditar na dialética do bem e do mal - para existir o bem, o mal deve existir. Nietzsche, que tanto cito, não poderia estar mais correto. O mundo, nessa representação à dois, luz de velas e taças de vinho, não poderia ser mais pesado e prazeroso. Por quantas vezes esse tu aparece como um mito. O tu do desejo, dos lençõis, da cama desfeita e do café da manhã. O mesmo tu da guerra, do ódio e das maravilhas do antigo mundo.
E fica sempre por um fio. Tênue, delicada e frágil. Somos a grande experiência de deus. Somos a verdade e a mentira, juntas, criando espaços inabitáveis.
Quanto ao Ibsen, sozinho é aquele que encontra a derrota da vida. A força falsa de viver à dois. Ou mesmo o Hesse quando disse que o homem é o lobo do homem.
Um brinde.
Que não teria o menor sentido, se não houvessem duas taças.

Wednesday, May 13, 2009

Writers block

A criatividade se foi. Morto o iluminismo, morta a inspiração. Algo que traduza bem o momento, a febre, a saúde. Tudo revirado:

I'm feeling rough
I'm feeling raw
I'm in the prime of my life
Let's make some music make some money find some models for wives i'll move to Paris, shoot some heroin and fuck with the stars.
You man the island and the cocaine and the elegant cars
This is our decision to live fast and die young
We've got the vision, now let's have some fun
Yeah it's overwhelming, but what else can we do?
Get jobs in offices and wake up for the morning commute?
Forget about our mothers and our friends
We were fated to pretend
I'll miss the playgrounds and the animals and digging up worms
I'll miss the comfort of my mother and the weight of the world
I'll miss my sister, miss my father, miss my dog and my homeYeah
I'll miss the boredom and the freedom and the time spent alone.
But there is really nothing, nothing we can doLove must be forgotten, life can always start up anew
The models will have children, we'll get a divorce
We'll find some more models, everything must run its course
We'll choke on our vomit and that will be the endWe were fated to pretend

Yeah yeah yeah

Friday, May 08, 2009

Carta endereçada.

- Todos os dias eu acordo, levanto e olho no espelho para saber se ainda estou lá. E eu queria contar, como se eu mesmo pudesse ser um conto de fadas, uma história trágica e uma comédia grega. Tudo empilhado na sala. Mas essa sala você não conheceu e nem os olhos azuis da sua neta. Ela cresceu e já está falando quase tudo. Tem um ar doce, esperta e já demonstra sinais de uma teimosia familiar. O Fábio disse que ela tem a boca parecida com a sua. Talvez tenha. Ela lembra você, mãe. Estranho notar essa semelhança. Mas ela também tem muito de mim. Ela é atrapalhada e carrega aquele ar de chatice. Eu mostrei a sua foto para ela saber que você existia dentro dela antes mesmo de haver vida ali. As vezes, eu corro para casa, com novidades juvenis, querendo contar, querendo aquele colo que não existe em nenhum lugar do mundo. Essa foi a primeira sensação que eu tive quando você partiu. É um vazio. É uma solidão derradeira. E fica sempre aquele ar de saudade na casa, seja pelas roupas que restaram, seja pelas fotos que eu não tive coragem de me desfazer. E eu mudei tudo. Será que você conseguiu ver o quanto as coisas mudaram? A pessoa que eu me tornei? Outro dia lembrei-me do quão pouco estivemos juntos nos últimos anos. Eu me afastei. De certa forma, esperávamos por aquele dia. E quando ele chegou ninguém mais teve coragem de dizer seu nome. Eu nunca mais comi siri daquele jeito que você fazia. E mesmo com a receita na mão, o peito dói só de sentir o cheiro. E mesmo aquele arroz de forno, tão fácil de fazer, eu não consigo. Perco a mão, deixo diferente. São as pequenas coisas que dão saudade. Eu fiquei mais próximo da família. Unimos-nos pela saudade. Mas ao mesmo tempo, tudo ficou diferente. O Fábio cresceu, virou pai e agora é responsável pela família dele. E lá parece que o tempo não muda nada, nem mesmo as paisagens que você viu tão pouco. Mas será que tudo isso ainda faz algum sentido? As vezes eu acho que eu sempre te pergunto se eu ainda posso, mas todos os dias eu acordo, levanto e passeio pela casa, ainda em silêncio, com o barulho da rua.

- Mas você nunca mais esteve no sofá, fumando, tomando café e perguntando se eu não estou com fome ou se vou levar um casaco porque vai esfriar.